terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Chico Canta (Calabar: o elogio da traição)


À esquerda, a primeira capa, branca após censurarem a capa original com Calabar escrito, e à direita, a capa de outras edições, com o nome Chico Canta



Após serem citados três álbuns do Chico Buarque no presente blog (um que eu mesmo tinha escrito – Construção), percebi que certamente caberia mais. Um deles, em especial, merece uma atenção especial: Calabar (cujo nome foi censurado e ficou Chico Canta).

Entre 1972 e 1974, em parceira com Ruy Guerra, Chico Buarque escreve uma peça musical denominada “Calabar: o elogio da traição” tendo como tema a vida de Domingos Fernandes Calabar, senhor de engenho do início do século XVII que se aliou aos holandeses e que, por isso, foi condenado e entrou na história (escrita pelos portugueses) como um traidor.
Capa original censurada
Na véspera da estreia da peça, a Policia Federal censurou totalmente a sua apresentação, estendendo a proibição à divulgação de que o espetáculo tinha sido proibido. Quanto ao disco com a trilha do musical, o nome Calabar foi proibido. Por isso, o disco teve que excluir seu nome e foi lançado apenas como “Chico Canta”. Muito mais do que questionar versões oficiais e demonstrar que a história depende de quem a escreve, a peça foi uma forma inteligente de questionar a própria ditadura que o Brasil vivia no início da década de 1970.

O disco começa com uma canção instrumental denominada “Prólogo”, para emendar em uma das minhas preferidas do Chico: “Cala a Boca, Bárbara”, canção que apresenta as faces romântica e política lado a lado. Como pessoalmente não conhecia o teor exato da peça proibida, fui pesquisar sobre quem seria a personagem Bárbara e encontrei uma análise muito interessante feita pela ensaísta Adélia Bezerra de Meneses, professora de literatura da USP e da Unicamp e autora de dois livros que dissecam a poética de Chico Buarque em entrevista à CULT ( ver http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/lirismo-e-resistencia-de-chico-buarque).

 “O “Cala a boca” que marca a canção estigmatiza a peça e os tempos que a geraram: remete ao mesmo silêncio imposto de “Cálice” (= Cale-se) da época em a canção foi produzida, a década de chumbo dos inícios dos anos 70, auge da ditadura militar; mas também remete a uma imposição de silêncio, à proibição de pronunciar o nome de Calabar, personagem da história colonial do Brasil, na época do domínio holandês, e que tinha sido julgado pelos portugueses como traidor, executado e esquartejado, e condenado à extinção de sua memória, o que implicaria a proibição de mesmo pronunciar o seu nome (o que é infringido na canção, à força de repetição do refrão: CALA a boca BARbara: CALABAR). E esse é um dos mais belos poemas eróticos da língua portuguesa.”

A terceira é a bela “Tatuagem” (quero ficar no seu corpo feito tatuagem... que é pra te dar coragem..pra seguir viagem...quando a noite vem..).

“Ana de Amsterdam”, que vem na sequência, é outra música que retrata uma personagem da peça, no caso uma prostituta holandesa que cruzou o oceano em busca de dias melhores. Ana de Amsterdam reaparece na canção seguinte (“Bárbara”) em um tocante diálogo de amor entre as duas: Bárbara... Bárbara..nunca é tarde, nunca é demais. (...) Vamos ceder enfim à tentação das nossas bocas cruas ..E mergulhar no poço escuro de nós duas.”

As próximas duas (“Não existe peca ao sul do Equador/ Boi Voador não pode”), gravadas juntas, são marchinhas de carnaval levadas com muita alegria. A censura moralista novamente incomodou e o Chico teve que trocar o verso “Vamos fazer um pecado safado debaixo do meu cobertor” por “Vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo vapor”. Anos depois, ao ser gravada por Ney Matogrosso, atingiu grande popularidade.

“(...) Sabe, no fundo eu sou um sentimental...Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo... (além da sífilis, é claro)...Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar. ..Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora. (...)”

“Fado Tropical” (com pequeno trecho citado acima), tem, como o próprio nome diz, o tradicional ritmo lusitano que dá nome à música, uma verdadeira poesia. Nesta há partes cantadas por Chico Buarque, que se contrapõem aos lindos versos recitados por Ruy Guerra. O resultado é belíssimo. Para variar, a censura novamente interferiu e mandou suprimir a palavra “sífilis”. Na gravação final restou um breve silêncio no lugar.

Depois do romantismo de “Tira as mãos do mim”, “Cobra de Vidro” retoma a crítica política finalizando sensacionalmente com vários Presta Atenção com inegável tom policialesco.

“Vence na Vida quem diz sim” teve a letra totalmente censurada, restando na primeira versão do disco apenas a versão instrumental. Posteriormente, com a letra um pouco alterada, Nara Leão gravou-a, com a participação do Chico Buarque.

Para fechar o álbum, a breve e contundente “Fortaleza”: (...) minha fortaleza é de um silêncio infame... Bastando a si mesma, retendo o derrame... A minha represa”. Simples e forte ao mesmo tempo.


Sou obrigado a confessar que quando comprei esse disco (em formato CD há uns 20 anos) e com o nome de “Chico Canta” (com a sua foto de perfil na capa), desconhecia a sua história e até mesmo o fato de que o nome era para ser “Calabar”. Mesmo assim sempre gostei muito desse disco a ponto de, como muito bem lembrou a Carol, ter sido o escolhido como trilha sonora para o primeiro café da manhã que fiz para ela. Quanto à capa, tempos depois de ter sido lançado com a branca ou ainda com o seu perfil, o disco finalmente teve sua capa original divulgada. Pena que nos tempos atuais poucos compram CD ou vinil.

Sobre a influência dos anos de chumbo, que se caracterizou pela forte repressão e censura na primeira metade da década de 1970, em entrevista à Rádio Eldorado em 1989 (encontra-se em seu site oficial www.chicobuarque.com.br) Chico Buarque  diz o seguinte:

“Existe alguma coisa de abafado, pode ser chamado de protesto... eu nem acho que eu faça música de protesto....mas existem músicas aqui que se referem imediatamente à realidade que eu estava vivendo, à realidade política do país”.

De fato, fica evidente essa relação e só temos a agradecer o Chico Buarque por ter transformado esses graves obstáculos políticos em inspiração para compor e encantar. Triste é constar que quarenta anos depois, Chico Buarque ao invés de lidar com estúpidos censores de uma ditadura, tenha que aguentar os filhotes da ditadura que voltam a perturbar todos aqueles que, como Chico Buarque, lutaram por um país mais democrático. A esses, resta dizer um sonoro "Tire as Mãos de Mim!"

Para escutar esse verdadeiro clássico da MPB pode-se utilizar o aplicativo de músicas Spotify: https://open.spotify.com/album/2HbAJZnA6a8orrEtZEooRH

Paul