segunda-feira, 18 de abril de 2016

Beth Carvalho, Nos Botequins da Vida



Ontem, 17 de abril de 2016, foi um dia triste na história do Brasil e da sua frágil democracia. Como se não bastasse o golpe impulsionado por figuras mais deploráveis da política nacional, a votação transmitida ao vivo escancarou o estarrecedor nível dos deputados federais. Foi um espetáculo dantesco.
E nessas horas, tentando me apegar a algo que possa dar algum significado ou esperança, lembrei de tantos artistas que se mobilizaram nos últimos dias em prol da democracia. Gente do nível de um Chico Buarque, Chico César e Beth Carvalho, que chegou a lançar um samba contra o golpe.

Ao ouvir o samba da Beth Carvalho nesse momento da história do país, minha memória afetiva me levou diretamente para 1977, ano em que, criança, morei no Rio de Janeiro e, acompanhando minha mãe em algumas festas de amigos dela, passei a conhecer a fina nata da MPB e do samba, a começar pelo disco “Nos Botequins da Vida” que, inclusive, fazia parte da discografia de casa.  

 “Meu Deus mas para que tanto dinheiro
Dinheiro só pra gastar
Que saudade tenho do tempo de outrora
Que vida que eu levo agora
Já me sinto esgotado
E cansado de penar, meu Deus
Sem haver solução
De que me serve um saco cheio de dinheiro
Pra comprar um quilo de feijão”

O disco, lançado em março de 1977, abre com um clássico “Saco de Feijão” de autoria de Francisco Santana, com uma bem-humorada crítica às dificuldades econômicas da época do regime militar (e pensar que tem gente que sente saudades...).
Em seguida, outro samba clássico na voz da Beth Carvalho: “Olho por Olho”, de Zé Maranhão e Daniel: Dente por dente, olho por olho. Se tentar me enganar, bota a barba de molho. Irônico ela celebrar que a partir de hoje os direitos são iguais justamente quando se colocam em pauta dentro do Congresso Nacional diversas pautas retrógradas, inclusive relacionadas aos direitos das mulheres.

Depois, o primeiro samba-enredo da Portela: “Dinheiro Não Há (lá vem ela chorando), de Benedito Lacerda-  Ernani Alvarenga, de 1932. Consta que no desfile oficial da Praça XI, a então "Vai Como Pode" desfilaria com um samba de Paulo. Contudo, quando o líder portelense ouviu o samba de Alvarenga, imediatamente preferiu retirar seu samba, reconhecendo a superioridade da composição do amigo. Quase na hora do desfile, Paulo, empolgado, disse: "Alvarenga, o seu samba é melhor, nós vamos com ele. Vou retirar o meu" (1). Foi o primeiro samba apresentado em desfile a fazer sucesso nas rádios.

Os clássicos seguem com “Deus não castiga ninguém” (Paulinho Soares). Seria interessante que os nobres deputados de um país laico soubessem disso, afinal a gente mesmo é quem se castiga, meu bem.

Não Quero me vingar porque...vingança é sinal de covardia..: O disco segue em ritmo de roda de samba, com “Vingança”, de Carlos Cachaça. Talvez se Cunha gostasse de samba, poderiam ter poupado o Brasil do show de horrores proporcionado por vingança.

Tempo para respirar um pouco com “As moças”, de Paulinho Soares e Paulo César Pinheiro. Nessa, a roda de samba abre espaço para uma espécie de bossa.

A roda de samba volta com “Se você me ouvisse” do Nelson Cavaquinho e “Carro de Boi”, clássico de Manacea, que conta com a participação da Velha Guarda da Portela.

Depois de “Cuidado com a minha viola”, de Gracia do Salgueiro, vem “Desengano”, de Aniceto:

Um desengano dói
A minha alma tanto sente
Uma dor pungente,
Que invadiu meu coração
Depois de ser tão benevolente
Deste-me o desprezo ao invéz de gratidão
Recompensar-te a regalia que gozaste em minha companhia
Sempre procurei te agradar porém em vão
Me abandonaste sem qualquer satisfação
Hoje vivo assim a lamentar a minha sorte
Algo que só esquecerei com a morte.

Embora a letra remeta claramente a um desengano amoroso, ouvindo-a logo após o fatídico golpe de 2016, impossível não lembrar do Temer.

O ritmo diminui um pouco nas duas últimas lindas canções, deixando um certo ar de melancolia. Primeiro com “Sempre Só” (Edmundo Souto – Joaquim Vaz de Carvalho) para depois fechar com o clássico “O Mundo é um Moinho” do Cartola. Embora haja certos rumores de que ele teria composto essa música quando a filha estava saindo de casa, não encontrei nenhuma fonte confiável a respeito disso. De qualquer forma, quando a Beth Carvalho interpreta brilhantemente “Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos... Vai reduzir as ilusões à pó”, ficamos com certa esperança de que isso seja um recado ao Cunha e seus asseclas. Pode ser que demore, mas chegará um dia que quando notarem, estarão à beira de um abismo que cavaram a seus pés. Espero que não ainda tenha algo no país para ser salvo quando conseguirmos nos livrar desses bandidos. E que a luta da Beth Carvalho não seja em vão.

Para escutar no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=j2bgQW_vFu8

Paul
Nota
(1)    Informações obtidas em 18/042016 no site: http://www.portelaweb.com.br/arquivos.php?codigo=30&cod_cat=3

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